RESENHA SOBRE O LIVRO RUMOR DAS HORAS - PUBLICADA NO JORNAL A TARDE - 28/11/2009

12:27

Um olhar sobre o cotidiano
CARLOS RIBEIRO
Escritor, prof. da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(carlosribeiroescritor.com.br)


As crônicas reunidas no livro Rumor das horas, da ensaísta, cronista e professora de Literatura da UFBA, Cássia Lopes, nos conduzem, com fascínio e renovada surpresa, a minuciosos pormenores do cotidiano. Nelas, a estranheza dos temas e das abordagens ganha uma ressonância incomum quando combinada com a familiaridade da crônica como gênero marcado pela simplicidade, clareza e fácil comunicação com os leitores. Mas, como sabemos, há níveis de leituras. E Cássia, se, por um lado, atende a um deles, por outro exige um tipo de leitor muito especial: aquele que possa acompanhá-la pelas zonas limítrofes dos acontecimentos e objetos que expõe nos seus textos.
Vejamos, por exemplo, a crônica que dá título ao livro. Nela, a simples contemplação de uma ferrovia e de um trem, no qual “correm meus sonhos, árvores que passam, sem acenar nenhuma saudade”, abre espaço para a minuciosa investigação de um microcosmo de manchas, de insetos e flores que podem ser esmagados a qualquer momento. E, no momento seguinte, mergulha-nos, sem aviso, na dimensão subjetiva das intenções, das vertigens, das expectativas. Afinal, “Esperar um trem prevê o desenho da paisagem, a expectativa de uma carga, de um olhar perdido, de luzes, de fumaça desfazendo-se no céu”.
Através da expressão lírica, vivencia-se uma experiência que só se revela onde objeto, linguagem e sentimento estabelecem um pacto. E cujo principal efeito é aquele “estalo” que faz o leitor despertar. E dizer, para si próprio: “sim, é isto mesmo!” O trem, em movimento, traz consigo, lá onde “a quietude das pernas ganha sentido nos bancos”, a letra trêmula de quem quer escrever no seu interior, um gesto perdido, um adeus sem resposta, a coragem para enfrentar a noite, as vestes amassadas, os pulmões cheios de ar, “uma vertigem causada pela respiração do maquinista, pelo delírio do vizinho, pelo perfume que, inesperadamente, exala do outro”.
O leitor poderá, tal como o trem da crônica, prosseguir nessa viagem, visitando as diversas estações deste livro fascinante: a do mergulho voyeurista na intimidade de um(a) desconhecido(a) a partir do conteúdo de uma mala trocada durante uma viagem; a solidão e vazio profundos de uma mulher obcecada pela limpeza da casa que guardava “tantos objetos sem uso, dezenas de jantares perdidos, brincadeiras negadas sob as esporas da beleza, em torno de uma ordem familiar de uma dona de casa”; a bela elegia aos loucos das cidades do interior, que conseguem ouvir, tal como o personagem de Guimarães Rosa, o “recado do morro”, uma linguagem só por eles decodificada – mas que diz respeito a todos nós.
Não é isto, justamente, o que Cássia Lopes faz no seu livro? Assim, disfarçadamente, levando-nos em caminhadas (quase) distraídas pelas ruas de Lisboa, de Coimbra, do Porto, de Copacabana, ou na Serrinha de sua infância; colhendo aqui e ali lembranças de Borges, Saramago, João Cabral, Gláuber, Drummond e Miguel Torga, mas também de Ernesto da Vanguarda, não vem ela nos trazer esses recados, tão urgentes à nossa humanidade que se esvai dia após dia? Com sua intensa poesia, traz-nos a percepção clara e lúcida de que é a Vida, em sua inteireza e profundo mistério, que está nos detalhes. E que fica mais fácil, talvez, apreendê-la, “quando se nasce no sertão”, pois é onde se aprende, desde cedo, “a contemplar o vôo dos urubus: o baile entre a vida e a morte”.
Em tempo: o livro, com apresentações de Evelina Hoisel e Myriam Fraga, traz belas ilustrações de Fernando Oberlaender.

RUMOR DAS HORAS / CÁSSIA LOPES / EPP/BANCO CAPITAL / 112 P. / R$ xxx

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