RESPOSTAS DO VENTO
15:53
Para Francisco Carvalho
Infelizmente,
as forças de destruição parecem mais ágeis e eficazes do que as ferramentas da
construção: às vezes, são necessárias décadas ou até um século para se
construir uma igreja, mas vem um incêndio, como mero evento de labaredas, fruto
de uma mão displicente e irresponsável, e transforma paredes bordadas em ouro e
relíquias da arte sacra em cinzas. Caso recente foi visto em 2014, com a
igreja de São João Batista de Anzegem, recém reformada na Bélgica, que passou
por essa experiência. Também podemos lembrar o Mosteiro de São Bento, em Monte
Cassino, na Itália, atravessado por balas e explosões durante a segunda guerra;
ou mesmo um gesto impulsivo motivado pelo calor de uma ofensa. Enfim, não somos
senhores do nosso mundo, sequer dos nossos caminhos e acontecimentos.
Não é raro o
amor ou mesmo uma amizade, sonhada e construída durante muitos anos, declinar
de seus sonhos diante de uma traição, ou de uma trovoada de ofensas,
transformando-se em ruínas. Estamos lidando com o fio tênue da segurança, da
angústia diante do fugaz e, ao mesmo tempo, a consciência de um tempo histórico
assumido e vivido com cada ente e objeto que encontramos pelo caminho.
A questão é
como superar o suposto fatalismo das moiras, que fazem do incêndio a inocência
de um gesto deixado na incerteza do cotidiano: uma fagulha que se dispersou de
um cigarro e atingiu uma toalha de mesa, ou uma panela largada no esquecimento
das horas que alcançou seu ápice e explodiu pelos céus; ou uma fagulha,
dispersa no instante aziago, que destruiu um avião, eliminando tantas pessoas
pelos ares... ou mesmo a embriaguez, originária de um turbilhão de palavras
recalcadas, cuja força atinge o rosto do outro e transforma a festa em
desencanto. Então, como libertar o homem dessa gangorra frenética que oscila
entre a destruição e a poética do acaso, erguendo cada gesto no limite de seu
paradoxo? Talvez, esta seja a tarefa mais árdua: entender que o mesmo gesto
condutor da queda pode ser a alavanca de ascensão humana.
Tudo depende
de como narramos as nossas ações e os sentimentos, surpreendendo a nós e às
expectativas do senso comum. O ressentimento parece a morada mais previsível
para quem foi magoado por alguém; a indelicadeza para quem sofreu um tipo de
agressividade, a dor para quem viveu a perda ou uma decepção. O que faremos dos
gritos em certas horas de silêncio e calma, diante do mar que reflui ou da
indiferença do mundo? Mais do que um lamento melancólico, estou a pensar o
ressentimento como o retorno constante de um fato do passado, de um gesto ou
fala que não pode ser digerida, uma dispepsia existencial que impede o homem de
seguir à frente em suas crônicas cotidianas; uma impossibilidade de se entregar
ao presente sem esse ontem a imprimir uma marca nas horas. Chega-se a um nível
tal que esse sentimento transborda e causa enormes estragos, numa defesa cega
erguida pelo indivíduo em relação a seu mundo; culpabilizando alguém, talvez um
desconhecido, pela dor sentida.
A embriaguez
de um ressentido quase sempre causa mais destruição do que beleza,
diferentemente da embriaguez de um poeta. O que afirmo é que embriagar-se é
para poucos: há quem consiga fazer desse estado alterado de consciência um
momento de lucidez criativa, uma oportunidade para rir e levitar diante do peso
das horas ou, simplesmente, descansar os olhos na contemplação de uma tarde ou
de uma música... Basta lembrar-se de Baudelaire: “É preciso estar sempre
embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do
tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem
descanso. Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas
embriaguem-se”. No Dionísio de Baudelaire, mostra-se um ser que se desapega da
cadeira passiva e sedentária da queixa, da submissão aos impulsivos agressivos,
para desenhar-se em outra postura. É uma oportunidade criativa. Já para o
ressentido, é o momento de extravasar as mágoas, de repetir a mesma fotografia
e o sentimento de outrora: um tipo de Sísifo embriagado de passado, que carrega
a pedra até o alto da montanha para deixá-la cair novamente, numa coreografia
cansativa e melancólica. Seduzido por um Hamlet impotente, o ressentido é
realmente aquele que toma o veneno acreditando que o outro vai sucumbir à
infelicidade, numa fantasia vingativa ingênua e ciumenta.
Há uma
indústria social que se alimenta dos ressentidos. Uma paralisia discursiva em
torno do mesmo evento e do mesmo passado não refeito. É urgente pensarmos o que
faremos de nossos afetos, mas também dos desafetos; como vamos escrever as
nossas ações e os acontecimentos, isto é, que tipo de narrativa e movimento
queremos dar à história da nossa embriaguez. Mais uma vez, recordo Baudelaire:
“E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso,
na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você
acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo
que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala,
pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão”.
A resposta a esta pergunta chegou-me de maneira inesperada.
Certa vez, saí com amigos para um restaurante e um menino de dez anos, filho
desse casal de amigos, estava inquieto. Inventamos um jogo no bloco de notas
guardado em minha bolsa: começamos a enumerar, por ordem de importância, os
movimentos ou atividades que nos davam prazer na vida. Ele me disse que, em
primeiro lugar, encontrava-se o futebol, mas, em segundo, era o estado de não
fazer nada... e fomos elencando nossas emoções, em outro tipo de embriaguez,
sem nenhuma vaidade ou pose, sem divórcio entre o vivido e o sonhado.
Recentemente,
reencontrei o mesmo menino em uma praia. Ele me falou de novas emoções e
alegrias e me disse que nunca havia esquecido o nosso jogo. Afirmou-me que
antes a palavra “prazer” não era constante no seu vocabulário, mas, desde
aquele dia, pensava a sua vida nesses termos; e reiterou o deleite de não fazer
nada. Descobrimos que os afetos são uma forma poderosa de conhecer alguém,
porque “ninguém consegue ser hipócrita com seus prazeres”, como dizia Albert
Camus. Diga-me o seu prazer e saberei como constrói seu modo de existência.
Sim, há muitos modos de existir e se dar existência. Talvez, o prazer exija um
abandono da ansiedade em que não nos preocupamos em decifrar as mensagens do
além; abrimos mão das pitonisas e dos oráculos. Também não temos tempo, nem
necessidade, de publicar no facebook nosso rosto sorridente, demente...
No trampolim
das horas, os ginastas de Dionísio entregam-se ao ar sem medo, nem angústia,
sem nenhum adestramento de si. Sem crise de abstinência, nem ressaca moral; sem
exames de consciência, os ginastas lançam seu corpo ao vento. Amantes da
liberdade, embriagam-se com outra escrita, abandonando antigos rancores; corpo
ágil, na valsa das árvores, confiam no calor da tarde e na imensidão do mar,
refeito na memória de antigas paisagens.
Crônica originalmente publicada no site Gazeta dos Búzios
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