Cosa resta di Cabiria? / O que resta de Cabíria?

01:58

Cosa resta di Cabiria?

Cássia Costa Lopes
Tradução Daniel Fonnesu



Federico Fellini (1920-1993) non ci ha lasciato soltanto film indimenticabili, ma ha trasmesso soprattutto il sapore di liberazione della potenza che nasce dal resto delle esistenze umane, davanti alle rovine del nostro tempo. L’affermazione può sembrare vaga se non contestualizziamo i motivi che fermentano tale constatazione e orientano la scrittura di questo saggio. A tal fine, sceglieremo la protagonista femminile del film del 1957 “Le notti di Cabiria”, la cui interprete è Giulietta Masina, moglie del cineasta italiano. Tale film le ha consegnato la Palma d’Oro come miglior attrice a Cannes, e ha conquistato l’Oscar come miglior film straniero.

Discorrendo dell’impossibilità di classificare i grandi creatori, Federico Fellini rivela a se stesso: “Ma è un assurdo volerli differenziare tra comici e filosofi, attori e autori, pagliacci e poeti, pittori e cineasti”[i]. (FELLINI, 1983, p. 53, traduzione nostra) Nel mezzo di questa riflessione, quando il criterio di classificazione si rivela riduttivo, il regista si ricorda di Toulouse Lautrec come di un amico, come di un esempio illustrativo nella sua dichiarazione: “[...] perché ha previsto le immagini del cinema prima che i fratelli Lumière inventassero il cinematografo, forse perché si sentiva continuamente attratto dai diseredati e dagli sventurati, da coloro i quali le persone ‘rispettabili’ consideravano dei depravati”[ii]. (FELLINI, 1983, p. 53-54, traduzione nostra). La simpatia del cineasta italiano nei confronti del pittore francese può essere compresa attraverso la scelta di Fellini riguardo al destino e alle sventure del personaggio di Cabiria.

Malgrado ritragga l’Italia devastata dalla Seconda Guerra Mondiale a 12 anni dalla fine del conflitto, “Le Notti di Cabiria” espone l’atmosfera di desolazione in una prospettiva che oltrepassa la mera dimensione territoriale, con echi degli orrori praticati da Mussolini e dai suoi seguaci fascisti. Si osservano altre forme di abbandono rese esplicite dal personaggio centrale, peregrino di altre frontiere del linguaggio, in dialogo con lo scenario contemporaneo, al di là del cinema neorealista. Si tratta di una prostituta che abita alla periferia di Roma, in una zona inospitale la cui materialità dello scenario, di per sé, ritrae la quotidianità del personaggio: la casa acquisita con molto sforzo e con lunghe notti di fatica si limita ad una costruzione con un unico vano, ad una scatola di cemento nel mezzo di una terra arida, immagine che è sintesi del mondo di Cabiria e delle sue vicine, paesaggio sprovvisto di illusioni e fantasie.

Leia texto integral em italiano na Revista SARAPEGBE

O que resta de Cabíria?


Federico Fellini (1920-1993) não apenas deixou filmes inesquecíveis; sobretudo, transmitiu o sabor de libertação da potência que nasce do resto de existências humanas, diante das ruínas do nosso tempo. A afirmativa parece vaga, se não contextualizarmos os motivos que fermentam tal constatação, norteadores da escrita deste ensaio. Para tanto, vamos escolher a protagonista feminina do filme Noites de Cabíria, de 1957, cuja intérprete é Giulietta Masina, esposa do cineasta italiano. Esse filme lhe rendeu a Palma de Ouro de melhor atriz em Cannes e conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Ao discorrer sobre a impossibilidade de classificar os grandes criadores, Federico Fellini revela a si mesmo: “Mas é um absurdo querer diferenciá-los entre cômicos e filósofos, atores e autores, palhaços e poetas, pintores e cineastas”. (FELLINI, 1983, p. 53) Em meio a essa reflexão, quando o critério classificatório mostra-se redutor, ele se lembra de Toulouse Lautrec como um amigo, como exemplo ilustrativo de sua declaração: “[...] porque previu as imagens do cinema antes dos irmãos Lumière inventarem o cinematógrafo, talvez porque se sentisse continuamente atraído pelos deserdados e desafortunados, aqueles a quem as pessoas ‘respeitáveis’ consideram depravados”. (FELLINI, 1983,p. 53-54) A simpatia do cineasta italiano pelo pintor francês pode ser entendida pela escolha de Fellini quanto ao destino e as desventuras da personagem Cabíria.

Embora retrate a Itália devastada pela Segunda Guerra, após 12 anos, Noites de Cabíria expõe a atmosfera de desamparo numa perspectiva que ultrapassa a dimensão apenas territorial, com os ecos dos horrores praticados por Mussolini e seus asseclas fascistas. Observam-se outras formas de abandono explicitadas pela personagem central, peregrina de outras fronteiras de linguagem, em diálogo com o cenário contemporâneo, para além do cinema neorrealista italiano. Trata-se de uma prostituta, habitante da periferia de Roma, uma região inóspita, cuja materialidade do cenário já retrata o cotidiano da personagem: a casa adquirida com muito esforço e longas noites de lida se restringe a uma construção com um único cômodo, uma caixa de cimento no meio de uma terra árida, imagem síntese do mundo de Cabíria e de suas vizinhas, paisagem desprovida de ilusões e de fantasias.
 
OS ENGANOS DE CABÍRIA
 
Apesar de se perceber certa curva dramática no roteiro do filme, seu caráter aproxima-se do episódico. A narrativa de Cabíria poderia ser resumida numa sucessão de enganos, de desacertos amorosos, numa simplificação econômica de dados biográficos, talvez por isso mesmo problemática para situar a complexidade da personagem. Na primeira cena do filme, descortina-se a troca de beijos entre os amantes, mas o ambiente romântico dissipa-se, quando a personagem é lançada pelo seu namorado em um rio. Ela foi literalmente arrebatada pela correnteza das águas. Poderia ter morrido, não fosse a ação generosa de algumas crianças que a salvaram do afogamento. Mergulhada em agonia e desencanto, a personagem custou a acreditar no gesto vindo daquele homem por quem julgava ser amada. No entanto, constatou a razão do ocorrido: o interesse pela sua bolsa, onde se encontravam 40 mil libras. Por mais que Cabíria tentasse se segurar nas promessas do amor, ela parecia sempre destinada ao fracasso amoroso e a caminhar pelas esquinas e noites de Roma.

A partir dessa cena inicial, são vários os episódios apresentados sobre o modo como Cabíria vive seu cotidiano de meretriz, com seu caráter sempre aberto e inacabado. Cada homem com que ela se deita traz, para a personagem, a insegurança máxima dos dias, a incerteza como a única certeza, mas nos revela um ser que não está fechado sobre si mesmo, guardado no em si, inacessivelmente. O seu ofício exige que esteja aberta ao acaso, ao acontecimento, quando alguém poderá chegar, inesperadamente, para solicitar os seus serviços. Se a noite não lhe traz o esquecimento dos dias no sono das madrugadas, vemos que, na troca entre prazer e dinheiro, na relação com o corpo da meretriz, transparecem múltiplas facetas humanas, seus planos psicológicos e sociais, os ecos dos pesadelos e sonhos de muitas mulheres.

Levada pela neblina de sua rotina, a personagem vislumbra a luz indecisa de uma boate elegante, lugar direcionado ao entretenimento dos mais abastados financeiramente. Defronta-se com o olhar de soslaio do segurança da casa noturna, como a dizer-lhe quão estranha é naquele mundo, cuja senha de entrada não foi dada a conhecer. Em meio a esse quadro embaraçoso, acaba assistindo a um conflito entre um homem e uma mulher: o ator famoso Alberto Lazzari, interpretado por Amedeo Nazzari, e a namorada Jessy, interpretada por Dorian Gray. É inacreditável a cena vista, principalmente porque o ator convida Cabíria para adentrar um carro de luxo e a leva para sua mansão, espaço avesso ao seu habitat, com um aparato decorativo marcado por alto grau de sofisticação, impossível para o mundo povoado pela meretriz. É um choque
de classes, de modos de existência, mas isso não foi o obstáculo para o encontro afirmado pelo acaso, não fosse a chegada inesperada da namorada Jessy, que leva Cabíria a se esconder no banheiro da alcova e passar a noite ao lado do cachorro de estimação da casa. O sonho se desfez e trouxe a manhã despossuída de encantos. Mais uma vez, a personagem encontra-se em meio à sua solidão e ao desamparo.

Em contraste, em outro episódio, mostra-se a prostituta a entrar em um caminhão, dirigido por um homem qualquer, cliente desprovido de recursos econômicos, sem saber qual estrada a esperava. Após o encontro, acabou sendo deixada em um terreno baldio, com gente abandonada, mendigos escondidos em buracos, pequenas cavernas, onde se protegiam do frio e do olhar alheio. Na cena, a personagem viu um homem a distribuir alimentos, uma pessoa dita caridosa, cuja prática parecia ser reconhecida por aqueles necessitados de ajuda, mas também por Fellini e sua visão do cristianismo:
 
Cristão, o que quer dizer isso? Se, por cristão, se compreende uma atitude de amor pelo próximo, parece que... sim, todos os meus filmes têm como eixo essa ideia. Há uma tentativa de contar um mundo sem amor, personagens cheios de egoísmo, pessoas que exploram os outros e, nesse panorama tão ‘beluário’, há sempre, e especialmente nos filmes com Giulietta, um pequeno ser que quer dar amor e que vive pelo amor. (FELLINI, 1983, p. 54)
 
Embora o cineasta ressalte esse aspecto cristão de seu personagem, inscrito em Noites de Cabíria, há, em Fellini, uma vocação para pensar o cristianismo para além dos dogmas. Existe a presença do cristianismo numa prática religiosa que excede os aspectos dogmáticos, pois a heresia parece nortear os seus filmes: “Acredito em Jesus: que ele é não apenas o maior personagem da humanidade, mas que continua a sobreviver no ser que se sacrifica por seu próximo. Sou ignorante a respeito dos dogmas católicos. Talvez seja herético.” (FELLINI, 1983, p. 55) Dentro dessa moldura de crenças, vemos Cabíria seguir uma procissão por Roma e pedir à Virgem Santíssima a mudança do rumo dos seus dias. A cena da prostituta, realizando suas preces aos pés da Santa, enfatiza o abandono da personagem, suas angústias, em gesto denunciador de seus desejos mais íntimos.

Quanto a esse tema, o cineasta comenta: “Meu cristianismo é bruto. Não pratico os sacramentos, mas penso que a prece poderia ser considerada como uma ginástica que nos levaria cada vez mais perto do sobrenatural”. (FELLINI, 1983, p. 55)

O próximo episódio do filme, no entanto, desmonta toda a ideia de salvação. Após a prece destinada à Virgem Maria, defrontamo-nos com a personagem, interpretada por Giulietta Masina, numa cena emocionante: ela entra em um teatro de variedades e se encontra com um mágico que exercita, no palco, a hipnose como uma de suas atividades lúdicas. Ela sobe no palco, a convite do profissional, e se deixa hipnotizar. Com esse gesto, exibe suas fantasias amorosas e seu enorme desejo de ser amada. Toda sua inocência fica exposta para a plateia, onde se encontra Oscar, um oportunista que vê, na moça, presa fácil para um golpe em face dos sonhos românticos: o da promessa do casamento e do grande amor. Ele se aproxima de Cabíria e constrói toda uma narrativa que a seduz a partir das projeções assistidas no palco.

E no desejo, ainda sustentado pela fantasia de ser amada, ela se deixa enganar mais uma vez, e a cena se repete. Ela vende a casa onde guardava sua memória, o espelho onde se mirava em cada manhã. Põe as roupas em malas e segue ao encontro do amado, com todo o dinheiro arrecadado com as vendas dos seus pertences. Em um restaurante, vestido da máscara de cavalheiro, Oscar não a deixa pagar a conta da refeição, e a convida para dar um passeio por um bosque. Ela confia, deixa suas malas no local e seguem esse caminho que desemboca, literalmente, em um abismo, no qual ele pretende empurrá-la. Somente na beira desse despenhadeiro, ela pressente a vontade do namorado de matá-la: aos berros, pede para que ele dê fim à existência dela, mas sente que ele só deseja o dinheiro. E se repete a mesma cena inicial do filme. Uma repetição, com uma diferença significativa: mais uma vez, um homem tenta matá-la, passando-se por um enamorado e foge com sua bolsa, mas este último não a empurra desfiladeiro abaixo. Ele foge com todas as economias de Cabíria, resultantes de anos de trabalho. Estupefata diante do ocorrido, ela permanece viva, aberta a um caminho desconhecido, sem nenhum tipo de expectativa. Quanto a esse final, o cineasta comenta:
 
Meus filmes, ao contrário, dão ao espectador uma responsabilidade muito específica. Eles terão, por exemplo, que decidir qual será o fim de Cabíria. A sorte de Cabíria está nas mãos de cada um de nós. Se o filme nos emocionou, nos perturbou, devemos imediatamente, desde o primeiro encontro com os amigos, ou com nossa mulher (porque qualquer um pode ser Cabíria, isto é, uma vítima), devemos começar a manter relações novas com o nosso próximo. Se filmes como I Vitelloni, La Strada, Il Bidone, deixam no espectador esta emoção misturada com um leve mal-estar, penso que tingiram seu objetivo. Sinto e posso mesmo afirmar hoje, sem hesitação, que todas as histórias que imagino são para representar uma inquietação, um desconforto, um estado de fricção nas relações que deveriam ser normais entre as pessoas. Definitivamente, não quero dizer, com meus filmes, nada a não ser que, com maior ou menor obstinação, deve haver uma maneira de melhorar as relações entre os homens. (FELLINI, 1983, p. 131)
 
O SORRISO DE CABÍRIA
 
Mas o que resta de Cabíria, depois de tudo? A última cena, após esse episódio, é crucial para a construção deste ensaio. Quando o mundo parece desabar, quando seu projeto mostra-se arruinado, a personagem revela-se condenada a ser um resto humano, sem absolutamente nada nas mãos. Atordoada, sem nenhum adjetivo possível de qualificar sua existência, ela se encontra com a própria vida nua, com o resto de si. Regressa pelo bosque, entre rumores de árvores e ventos, até chegar a uma estrada onde se encontra, inesperadamente, com crianças e suas vozes a entoarem uma música, que leva Cabíria a movimentar o corpo, num impulso único de vida. Segundo o próprio Fellini, “Cabíria, minha última figura, ainda frágil, desditosa e terna, depois de tantas desventuras e do fracasso de seu ingênuo amor, continua a crer no amor e na vida.” (FELLINI, 1983, p. 62) Nasce o esboço do sorriso no rosto dessa mulher, entre ruínas de si mesma. A personagem, envolvida em ritmos, produz o riso no rosto, mas o que significa esse gesto de Cabíria? Sua tez ensolarada em meio a tudo?

Não há, no entanto, uma salvação transcendental para a personagem Cabíria. Também esse riso não seria sinônimo de esperança, pois esta ainda se apoia em uma ideia de tempo futuro, quando o que notamos é mais a afirmação do presente, devir-eu no instante, não nos dias vindouros. O filme de Fellini não é uma apologia débil da esperança. Se a personagem não desiste da vida, é pela própria vida que resta, que a impulsiona. Só sobra o amor a nascer do próprio resto, não é um amor por alguém: Cabíria não tem ninguém a quem amar; é órfã, não possui filhos, parentes, ideais consagrados, ninguém em especial, a não ser a colega de prostituição, de quem se despediu sem nenhuma dor. Enfim, o que resta a Cabíria é uma força a movê-la, presente na sua vida desqualificada, mas pulsante na música tocada pelas crianças na estrada.

Nessa cena extrema, se o elemento musical traduz a presença de Dioniso, seu princípio de dissociação do eu, também assume função importantíssima para o desfecho ou abertura da narrativa de Cabíria. Aqui, a vida é só voz; ela não é fala em nome de alguém específico, entra em outros jogos de solidariedade, não restritos aos humanos, são os rumores do bosque, inseparáveis da música e das vozes das crianças. Cantando e dançando como parte de uma comunidade, “[...] o subjetivo se esvanece em auto-esquecimento”. (NIETZSCHE, 1998, p. 30) O homem é também obra de arte coletiva, quando emerge o esquecimento de uma subjetividade centralizadora, carregada de individuação. Este era o papel dos coros báquicos e das festas orgiásticas: produzir o laço com a natureza, com as crianças e com os seres humanos. Quanto a essa cena, Federico Fellini esclarece: “Uma explosão lírica em música, uma canção cantada no bosque, encerra o filme tão trágico porque, apesar de tudo, Cabíria leva no coração o segredo de uma graça descoberta. E não se trata de buscar definir a natureza dessa graça”. (FELLINI, 1983, p. 131) Bem, nossa questão é exatamente pensar esse “apesar de tudo”, como categoria estética e filosófica, sugerida por Fellini, em seu filme.

A narrativa trágica de Cabíria parece trazer, em suas entranhas, a problemática existencial básica: a maneira como o homem responde ao sofrimento, à dor, com toda crítica ao pensamento ascético. Se, com Nietzsche, pensamos o motivo pelo qual os gregos produziram os deuses olímpicos ou a tragédia, se foi para tornar a vida possível ou desejável e para oferecer ao mundo uma superabundância de vida, o que faz Fellini em seu filme? Sua arte é um modo de reagir ao pensamento pessimista puro que aniquila e paralisa a vida e, para isso, assimila o trágico? As passagens fellinianas instauram um pessimismo para além do bem e do mal, contra a significação moral da existência, construindo uma reflexão sobre o valor da vida mesma, numa crítica à moldagem ressentida da praxe humana.

Com a cena final do filme, ocorre a valoração artística da vida, refratária à concepção moral da existência, aos paradigmas modulados pelo certo/errado; erro, acerto. A vida justifica-se como fenômeno estético: a vida como obra de arte, mas a estética não é subjugada pela razão. Com a arte musical de Dioniso, aprendemos com Nietzsche que existe o perigo em ficar à beira do abismo, do precipício, mas a criança aceita ficar por prazer, ela brinca com o precipício porque sobra jovialidade, sobra força. Se o puro Dionísio é um veneno, uma vez que pode acarretar o aniquilamento da vida; a arte surge como força que transfigura o veneno em remédio. A nossa questão é exatamente essa: como transformar a vida nua, o resto de uma vida, como converter o veneno em antídoto, em remédio. O filme nos incita a pensar, em uma leitura mais rápida, que Cabíria é apenas uma sobrevivente, pois emerge como sujeito residual, trapo humano, entregue à vida nua. No entanto, o filme aponta para outro aspecto: quando a vida nua traz, em si mesma, o antídoto contra a nadificação, ciente de que: “A nossa política não conhece hoje outro valor (e, consequentemente, outro desvalor) que a vida”. (AGAMBEN, 2014, p. 17)

Assim, o resto de Cabíria é o que está por toda parte do corpo biopolítico, um corpo que existe em espaço subjetivo inseparável de um espaço político, um ponto no qual a servidão voluntária, diante dos homens e dos deuses, comunica-se com o que há de mais solto e vazio da vida nua, na crítica a todo regime totalitarista. O trabalho de Cabíria é com o corpo, e é exatamente aí que se dá o investimento de controle e exploração. Alargando esse enfoque, sobre as ruínas da história de cada um e do mundo, Giorgio Agamben traz contribuição fecunda sobre esse tema da vida e sua nudez, em seu livro o Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, importante para a leitura do filme escolhido para análise.

Segundo o filósofo italiano, os gregos não usavam um único termo para significar a vida, mas costumavam diferenciá-la entre zoé: que expressa o “[...] simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou os deuses) e a bios, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo”. (AGAMBEN, 2014, p. 9, grifo do autor) Se para os gregos pensar a zoé política seria impossível, o mesmo não ocorre na contemporaneidade: uma simples vida, ou vida natural, pode trazer um elemento forte de resistência e de transformação política, é o que declara Agamben quando explicita a lucidez de Aristóteles: “[...] é evidente que a maior parte dos homens suporta muitos sofrimentos e suporta a vida (zoé), como se nela houvesse uma serenidade (eueméria, belo dia) e uma doçura natural”. (AGAMBEN, 2014, p. 10, grifo do autor)

Se a simples vida natural, o corpo com suas forças, é recalcada no mundo clássico, por processo de polarizações e dicotomias, o cinema felliniano nos oferece a oportunidade de rever esses termos. A chave é ler a graça, vivida por Cabíria, ao fim de tudo e de todas as suas perdas, em um trânsito, numa zona límbica, entre a vida nua, desqualificada, no seu mais intenso resto, e a vida qualificada (bios), politizada. O que resta em Cabíria, paradoxalmente, é o caráter indestrutível depois de toda destruição, é a ruína de si que resiste a toda exploração, uso, abuso das pessoas e dos homens, a toda manipulação social. Nota-se outra forma de definir a resistência fora do jogo opositivo: resistir não é opor-se a um sistema, a alguém específico, mas a resistência é potência de vida; é como Nietzsche aprendeu com o mundo helênico: é criação, é arte. A natureza expressa-se por uma via simbólica. Um simbolismo corporal em movimentos rítmicos; exterioriza-se na vertente lírica, de uma voz sem dono.

Isso é o que nos revela o filme de Fellini. O que resta é exatamente o que ninguém poderá destruir, a força disseminada na música tocada pelas crianças, uma vida intensificada que nos impõe uma suspensão no tempo presente, longe dos dispositivos de poder inscritos no futuro. Nesse caso, o porvir põe a vida como enorme pesadelo, sob as ameaças da morte e do infortúnio. Com Nietzsche, passamos a pensar a tragédia a partir do espírito da música, de acordo com os rituais de Dioniso. Assim, através do coro: “[...]a vida, no fundo de todas as coisas, apesar de toda mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria”. (NIETZSCHE, 1998, p. 55) Em referência a isso, Fellini traz a música e seu poder de suspensão lírica, que livra o homem das amarras teleológicas e faz com que se deixe levar pela estrada do presente. Quanto a esse enfoque, cito o próprio Fellini:

Quando, nas fitas, a carga lírica de inspiração, que sempre é um ato de amor, me permite esboçar um sorriso ante um rosto em lágrimas, estender a mão a quem está à beira de se perder, indicar um caminho ao que se perdeu, oferecer um ideal a quem apenas sonhou com fantasmas, quando consigo separar as aventuras da vida e seus enganos, fico com a impressão de não ter traído ninguém, de ter feito o bem, a mim primeiro que aos outros. Meus filmes não se orientam pela lógica do roteiro, mas numa dimensão do amor. (FELLINI, 1983, p. 62)
 
Plasmada na cena lírica, a música traduz o inominável, depois de tantas perdas, depois de tanta dor! A liberdade diante do que resta afirma- se na voz lírica, pois a dimensão do tempo muda: não há mais o futuro como um dispositivo de controle, com suas perspectivas e ameaças de conflito e de perdas. O que resta da noite é, portanto, Cabíria. É uma espécie de nome próprio dado à vida nua, como pura potência de reinvenção para outro caminho que não é narrável, biografável, não pode ser contada em episódios, porque ultrapassa o dizível. Há poesia, apesar do sofrimento. Não pela dor, mas, apesar da dor. Não é porque sofre, mas, apesar de sofrer todas as perdas, que ela não desiste de si mesma. Com Cabíria, também a vida é válida em si mesma e o homem deverá aprender a rir. Como Nietzsche afirmou: “O riso eu declarei santo: vós, homens superiores, aprendei – a rir”. (NIETZSCHE, 1998, p. 23) E Cabíria lança um poderoso “sim”!

Depois da dissolução do mundo da personagem felliniana, em que nada permaneceu intacto, resta pensar o que ficou das noites da meretriz? Pensá-la apenas como sobrevivente, pode empurrá-la novamente para uma vida matável, não como resto, rebeldia da vida nua, enquanto potência lírica. Esse é o recurso usado por Fellini para tratar desse tema no final do filme: foi o lirismo, a poesia a germinar no resto, como pura potência de criação, que fez a personagem Cabíria ser habitante de uma zona de possibilidade. Ela perdeu toda a dignidade. Tiraram--lhe tudo, menos a vida! Não eram só os homens que penetravam no corpo de Cabíria, mas o próprio poder, em sua forma de vida desqualificada. Mas não lhe tiraram o lirismo após a perda de tudo, a poesia da estrada. Se a animalização é um recurso utilizado, pelos aparatos de poder, para despotencializar a vida humana, a questão é capturar a zoé, a potência animal existente no humano. Eis a força do cinema felliniano! Chega-se ao limiar de nadificação humana para, diante desse enorme vazio, encontrar uma força capaz de afirmação da existência. A poesia deflagra-se nas ruínas de Cabíria. A poesia que resta, depois de uma Itália devastada pela guerra:

Na minha opinião, a decadência é a condição indispensável do renascimento. Já disse que amava os naufrágios. Sinto-me, portanto, feliz em viver numa época em que tudo naufraga. É uma época maravilhosa, porque é o naufrágio de uma série de ideologias, de conceitos e de convenções. O homem foi à lua, não é? Então, falar de bandeiras, de fronteiras e moedas diferentes é totalmente absurdo. É preciso modificar por completo tudo isso. Acredito que o processo de dissolução será completamente natural. Não vejo nisso o signo da morte da civilização, mas, ao contrário, (signo) de sua vida. É o fim de certa fase da humanidade. (FELLINI, 1983, p. 136)
 
A cena final do filme não significa o ocaso de Cabíria. Ao matarem os sonhos, ao retirarem todas as ilusões da personagem, ao lhe roubarem todo o dinheiro economizado por dias e noites de trabalho como meretriz, ao perder a casa, seus hábitos e seus pertences, a convenção afirma: Cabíria foi reduzida a uma ruína humana. Porém, é nesse momento que ela adquire a sua potência, não um poder equiparável ao construído pelos aparatos do Estado e da manobra da justiça, mas ao resto como possibilidade de vida, do vir a ser. Se os aparatos de poder se interessam pela zoé, vida nua, como forma de controlá-la, tal como ocorreu com a sexualidade descrita por Michel Foucault, cabe pensar uma arte que mostra como a vida nua torna-se política quando se revolve em resto, em um jogo complexo entre veneno e remédio. Se Cabíria representa exatamente a vida nua, que pode ser matável, aniquilada, é nessa mesma vida nua que ela encontra certa liberdade, uma força sobre a qual ninguém porá as mãos, um gesto sem dono, à margem. Uma força que não é narrável, o inominável diante do recurso biográfico, pois não se sujeita a um tipo de lógica da vida convencional.

Embora Fellini não defina seu filme como "engajado" e menospreze até esse termo, o que se nota é uma sensibilidade para pensar o desamparo humano e as ruínas da história de cada ser vivente, sem negligenciar as forças do corpo, numa espécie de ética do resto, ética desvinculada de uma moral ideológica e teleológica, de cunho salvacionista. É fora de uma consciência moral que a vida resiste e se liberta, é muito mais do que um aparato logocêntrico, pois envolve o movimento do corpo, o lirismo da arte de quem se deixa embalar por ventos, por música e por risos de crianças. É a eficácia de uma arte que potencializa a vida, enquanto agente de criação e reinvenção de si mesmo:
Com boas intenções, com bons sentimentos, com uma fé apaixonada nos próprios ideais, sem dúvida, pode-se fazer uma bela política, uma fecunda obra social – coisas talvez mais úteis que o cinema – mas não necessariamente bons filmes. E, no fundo, não há nada mais feio, e penoso, principalmente por ser inútil e ineficaz do que um filme político de má qualidade. O engajamento, na minha opinião, impede o desenvolvimento do indivíduo. Meu antifascismo é de ordem biológica. (FELLINI, 1983, p. 131)
 
A propósito, em disco dedicado a Fellini, Caetano Veloso nos apresenta a canção Giulietta Masina, fechamento de portas para esse ensaio. Nos versos, o cantor baiano declara: “Gulietta Masina/ Ah, puta de outra esquina/Ah, minha vida sozinha/ Ah, tela de luz puríssima/ Existirmos, a que será que se destina”. (OMAGGIO..., 1999) Nos versos destacados, nota-se a nítida alusão à personagem Cabíria, como se ela estivesse em todos nós. Há um pouco de Cabíria em cada um que se sente desamparado, a vida nua sem adorno. Como diz o poeta, “são pálpebras de neblina, pele d’alma” onde nos perdemos, onde nos colocamos em questão. Como ruínas de valores numa pergunta que não se cala: O que resta de humano, de cada um de nós depois das guerras, das perdas e das ruínas do tempo? Para que existirmos, a que se destina? A reposta vem no esboço do sorriso de Cabíria e de outras Cabírias. Nada muito explícito, nem claro. A vida é sempre um esboço, de acordo com o próprio Fellini.

Não creio que um artista tenha ou necessite ter ideias precisas. O que diz fora de seu trabalho não significa nada. É um conjunto de tolices. Não quero ter uma ideia fixa sobre a vida. A única coisa que quero saber é: ‘Por que estou aqui? O que é a minha vida?’ Afora meu trabalho, não estou seguro de nada. Quanto mais velho me torno, menos sei. Não sigo um método determinado de trabalho. Ou de vida. Simplesmente vivo. Simplesmente faço coisas. (FELLINI, 1983, p. 56)
 
Mas o poeta termina a canção com o seguinte verso: “Giulietta Masina/ aquela cara é o coração de Jesus”. (OMAGGIO..., 1999) Evidentemente, não se trata de reivindicar o aspecto puramente religioso, laudatório nos filmes de Fellini, mas se vê que Caetano percebe certo traço cristão expresso nos filmes fellinianos, com tudo que carrega de herético e político: o sagrado estaria expresso, em sua mais alta potência, no corpo de uma prostituta, de uma mulher abandonada por suas fantasias, mas que dança entre crianças. A divisão clara entre religião, política e arte se esgarça tanto em Fellini, como em Caetano, com certo olhar iconoclasta. As reflexões e os saberes dos dois artistas se conectam com os mais diferentes campos do conhecimento; extrapolam o sentido filosófico. Ocorre o jogo labiríntico entre categorias de cunho político e de ordem histórica, como também aspectos presentes em textos de perfil religioso, criando zonas de tensão e de convergência, a dissiparem as fronteiras claras entre um discurso e outro; neblina das verdades. Assim, podemos finalizar este ensaio declarando: Cabíria ainda existe e resiste em muitas mulheres, apesar de tudo!
 
REFERÊNCIAS
 
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
FELLINI, F. Fellini por Fellini. Tradução de José Antônio Pinheiro Machado, Paulo Hecker Filho e Zilá Bernd. Porto Alegre: LP&M, 1983.
FELLINI, F. Noites de Cabíria. São Paulo: Publifolha, 2018. (Coleção Folha Grandes Diretores do Cinema, 5). Acompanhado de um DVD com o filme.
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
OMAGGIO a Federico e Giulietta. Intérprete: Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Universal Music, 1999.

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Texto extraido da obra: Diálogos com FelliniCássia Lopes, Paulo Henrique Alcântara (Org). Salvador: EDUFBA. 2020, p. 35-50

Confira Também

0 comentários

Subscribe